A dor crónica, incluindo a dor relacionada com o cancro, afecta mais de 2 mil milhões de pessoas em todo o mundo. A gestão desta dor é um dos maiores desafios da medicina moderna, afectando significativamente a qualidade de vida dos doentes e representando um encargo substancial para os sistemas de saúde. Embora os medicamentos convencionais para o alívio da dor, como os opiáceos, sejam amplamente utilizados, estes têm frequentemente efeitos secundários graves, potenciais problemas de dependência e uma eficácia variável. Por conseguinte, existe uma necessidade premente de alternativas mais seguras e eficazes.
Nos últimos anos, os canabinóides – compostos naturais derivados da Cannabis sativa – têm surgido como candidatos promissores para o tratamento da dor. Compostos como o tetrahidrocanabinol (THC) e o canabidiol (CBD) são conhecidos pelas suas propriedades analgésicas, anti-inflamatórias e terapêuticas. No entanto, a sua utilização médica enfrenta desafios significativos devido à sua fraca solubilidade em água, baixa biodisponibilidade e instabilidade.
Para ultrapassar estes obstáculos, os investigadores estão a explorar as ciclodextrinas (CDs) – moléculas especializadas capazes de melhorar a entrega e a eficácia dos canabinóides. Um estudo recente publicado na revista Molecules (MDPI) investiga o potencial dos complexos de inclusão de ciclodextrina para melhorar o desempenho farmacológico dos canabinóides e terpenos associados. Esta inovação poderá abrir caminho a terapias mais eficazes à base de canabinóides para quem sofre de dores crónicas.
Os desafios das terapias com canabinóides
Os canabinóides, como o THC e o CBD, são moléculas lipofílicas, o que significa que se dissolvem bem nas gorduras mas mal na água. Esta caraterística limita severamente a sua absorção pelo corpo humano. Quando consumida por via oral, grande parte da dose de canabinóides é degradada no trato digestivo e no fígado antes de chegar à corrente sanguínea – um fenómeno conhecido como metabolismo de primeira passagem. Isto leva a uma baixa biodisponibilidade, o que significa que apenas uma pequena percentagem da dose administrada atinge a circulação sistémica para produzir efeitos terapêuticos.
Além disso, os canabinóides são quimicamente instáveis e propensos à degradação quando expostos à luz, ao oxigénio ou a temperaturas elevadas. Estes desafios impedem o desenvolvimento de tratamentos consistentes e fiáveis à base de canabinóides para a dor crónica.
Para resolver estas questões, os investigadores recorreram a sistemas de administração de medicamentos que podem proteger os canabinóides, melhorar a sua solubilidade e aumentar a sua absorção.
O que são ciclodextrinas (CDs)?
As ciclodextrinas são oligossacáridos cíclicos – moléculas de açúcar em forma de anel derivadas do amido. Têm uma estrutura única com uma cavidade interna hidrofóbica (que repele a água) e uma superfície externa hidrofílica (que atrai a água). Esta estrutura permite que os CDs formem complexos de inclusão com moléculas hidrofóbicas, como os canabinóides.
Quando uma molécula de canabinóide entra na cavidade hidrofóbica de uma ciclodextrina, fica encapsulada e protegida do ambiente externo. Este processo oferece vários benefícios:
- Aumenta a solubilidade na água: O canabinóide encapsulado torna-se mais solúvel em água, melhorando a sua absorção pelo corpo.
- Aumenta a estabilidade: As ciclodextrinas protegem os canabinóides da degradação ambiental causada pela luz, oxigénio ou calor.
- Biodisponibilidade melhorada: A solubilidade e a proteção melhoradas conduzem a uma absorção mais eficiente, permitindo doses mais baixas e efeitos terapêuticos mais consistentes.
- Libertação controlada: As ciclodextrinas podem facilitar a libertação controlada de canabinóides, assegurando efeitos terapêuticos prolongados.
O estudo: Ciclodextrinas e complexação de canabinóides
A investigação publicada na revista Molecules centrou-se na formação de complexos de ciclodextrina com canabinóides-chave (THC e CBD) e terpenos selecionados – compostos aromáticos encontrados na canábis que contribuem para os seus efeitos terapêuticos. Especificamente, o estudo investigou a inclusão de canabinóides com os seguintes terpenos:
- D-Limoneno (LIM): Conhecido pelo seu aroma cítrico e propriedades anti-inflamatórias.
- Beta-cariofileno (BCP): Reconhecido pelos seus efeitos analgésicos e anti-inflamatórios.
- Gama-Terpineno (γ-TPN): Apresenta propriedades antioxidantes e antimicrobianas.
Os investigadores pretendiam melhorar a solubilidade, a estabilidade e os perfis farmacocinéticos globais destes compostos através da formação de complexos de inclusão de ciclodextrina.
Principais conclusões
- Solubilidade melhorada: O estudo demonstrou que os canabinóides e os terpenos encapsulados em ciclodextrinas apresentaram uma solubilidade em água significativamente melhorada em comparação com as suas formas livres.
- Aumenta a estabilidade: A inclusão de ciclodextrina protegeu os canabinóides e os terpenos da degradação oxidativa e térmica.
- Efeitos sinérgicos: Quando combinados com terpenos, os canabinóides apresentaram um maior potencial terapêutico, provavelmente devido ao “efeito de comitiva” – um fenómeno em que os canabinóides e os terpenos funcionam sinergicamente para aumentar a eficácia uns dos outros.
Estes resultados sugerem que as formulações à base de ciclodextrina podem conduzir a terapias canabinóides mais eficazes, particularmente para o tratamento da dor crónica.
Implicações para o tratamento da dor crónica
Os doentes com dor crónica enfrentam frequentemente opções de tratamento limitadas. Os opiáceos, embora eficazes, apresentam riscos significativos, incluindo dependência e sobredosagem. Os canabinóides oferecem uma alternativa mais segura, mas são prejudicados por uma fraca biodisponibilidade e efeitos inconsistentes.
As formulações de canabinóides à base de ciclodextrina podem revolucionar o tratamento da dor:
- Proporciona um alívio consistente: A biodisponibilidade melhorada assegura que os doentes recebem doses previsíveis e fiáveis.
- Reduzir os efeitos secundários: Podem ser necessárias doses mais baixas para obter efeitos terapêuticos, minimizando os potenciais efeitos secundários.
- Aumenta a adesão dos doentes: Tratamentos mais eficazes e fiáveis incentivam uma melhor adesão aos regimes terapêuticos.
Este avanço é particularmente promissor para a dor relacionada com o cancro, em que a gestão eficaz e segura da dor é fundamental para melhorar a qualidade de vida.
Direcções futuras
Embora o estudo seja muito promissor, é necessária mais investigação para introduzir na prática clínica as terapias canabinóides à base de ciclodextrina. O trabalho futuro deve centrar-se em:
- Ensaios clínicos: Testar estas formulações em doentes humanos para confirmar a sua eficácia e segurança.
- Sistemas de administração inovadores: Desenvolver métodos avançados de administração, como sprays sublinguais, cápsulas orais e adesivos transdérmicos.
- Aprovação regulamentar: Navega pelo panorama regulamentar para garantir que estas terapias cumprem as normas de segurança e eficácia.
Conclusão
A utilização de ciclodextrinas para melhorar as terapias com canabinóides representa um avanço significativo no tratamento da dor crónica. Ao melhorar a solubilidade, a estabilidade e a biodisponibilidade dos canabinóides, as ciclodextrinas podem desbloquear todo o potencial terapêutico dos compostos derivados da canábis. Esta abordagem inovadora oferece esperança a milhões de pessoas que sofrem de dores crónicas que procuram um alívio mais seguro e eficaz.
À medida que a investigação progride, os tratamentos com canabinóides enriquecidos com ciclodextrina poderão em breve tornar-se uma pedra angular do tratamento moderno da dor, transformando a forma como abordamos a dor crónica e a dor relacionada com o cancro.
A revista Molecules publicou também um estudo que revela o potencial do canabigerol no combate à dor, à inflamação e ao cancro.